Juca tinha uns 23 anos, por aí assim. Era alto e forte; achocolatado como as meninas das escapadas o classificara. Próximo a completar 23 casou-se com Bela. Juca a conhecera num partido alto quando tocava com os amigos, para se divertir e faturar uma grana. Logo se encantaram, Bela tinha um remelexo hipnotizante nos quadris, um belo sorriso envolto por fartos lábios apimentados. Foi amor a primeira vista.
O primeiro encontro o fazia lembrar a forma como fora apaixonante ouvir um sujeito na Avenida Sete tocando uma música sem vozes, com um instrumento só. Era também um cavaquinho, mas o rapaz o tocava como se acariciasse o instrumento, o tocava e o sentia. Era harmonicamente sublime. De repente, um outro rapaz aproximou-se lenta e naturalmente com um violão como que sambando meio de ladinho. Encantando, agora, uns três ou cinco ouvintes que ali pertinho se encontravam.
O do cavaco era o Jr. e o do violão Bruninho. Assim que os rapazes pararam a música Juca direcionou-se a eles.
- Olá!
- Olá.
- Ouvi vocês tocando, achei excepcional.
- É chorinho. Tocas também?
- Toco. Mas não isso aí. Toco pagode.
- Vamos tocar uma juntos. Puxe um lá aí.
De pronto Juca emendou um lá lá lá ré só lá. Então os rapazes começaram o acompanhamento. Quando se deram conta estavam tocando um pagode meio vulgar conduzido por Juca; então pararam a música; Juca percebeu o desgosto dos rapazes em produzir aquele som. Então sorriu amarelamente e logo disse imponente:
- Quero tocar igual a vocês. Onde moram?
- Moramos no Costa Azul e você?
Engoliu reticente e respondeu: Na Valéria, aos arredores do Morro do Chuchu.
- Poderíamos tocar um dia na comunidade e depois ensaiarmos. Disse Bruno.
Juca ficou contente e confuso. Definitivamente aqueles caras não eram dos típicos playboys da zona nobre; ponderado, então, Juca sorriu e assentiu. Trocaram telefones para combinarem um dia e se despediram.
O casal tinha uma vida harmoniosa, apesar da moça não gostar mais que seu marido tocasse em partidos onde moças sedutoras requebravam a vontade. “E não gosto mesmo!” Reclamava sempre entoando um ciúme autoritário. Assim, Juca juntou “o útil ao agradável”, pois aprender a tocar chorinho significava, temporariamente, não tocar nos partidos e apaziguar, como sempre fizera, a relação com Bela.
Ela era uma moça de um metro e setenta e oito, por aí assim. Negra como se fosse da Costa; os cabelos em brilhante negro nagô davam um charme excepcional. Estudava num curso de administração numa faculdade privada daquelas que apareceram como trazidas numa enxurrada. Eram felizes, mas ela odiava a idéia de disputar o carinho do rapaz com o instrumento. Num dia desses aí, no ano de 2010, parecendo um Sábado, os tocadores estabeleceram contato indagando sobre a possibilidade de tocarem em algum ambiente nos pés da comunidade. Na realidade era um projeto dos dois de difundirem o estilo musical. Juca topou e ficou combinado da seguinte forma: se encontrariam às 14 na casa de Juca e à noite fariam um som no local.
Na hora exata aparecem os rapazes no local combinado. Num ponto coletivo ali aos arredores da MegaTork. Num carro popular com vidros escuros Jr. e Bruno convidam Juca à entrar; entrou e disputou espaços com um violão e um cavaquinho no banco de trás; compartilharam as afinidades, sonhos e planos durante o trajeto. Bruno concluindo o curso de Direito aos 24 anos, estava na carreira por tradição familiar; Junior tentara ingressar no curso de música da UFBA, mas sem sucesso. Juca logo afiliou-se a este devido ao sonho de entrar no curso de música tanto quanto pelo instrumento.
Muitos buracos e esgoto a céu aberto – um forte cheiro – enfrentou o veículo popular até chegar à casa do pagodeiro; era uma casa simples pequena e com pouca luz. Alguns poucos móveis, mas forrada de equipamentos eletrônicos, favorecidos pelas longuíssimas linhas de crédito. Bruno parou observando detalhes, não muito surpreso; As paredes pintadas com tinta de longa data, tinha na estrutura todos os sinais temporais e um quadro exibindo fotografias do casamento. As quatro primeiras paredes estavam cheias deles.
- Acomodem-se, por favor. Disse Juca, enquanto entreva no quarto para pegar seu instrumento.
Os rapazes sentaram-se no sofá, mas logo levantam-se afim de resgatarem os instrumentos no carro.
Fica ai, deixa que eu pego. Disse Bruno.
Junior concorda e recosta-se despojadamente no sofá; alguns segundos mais Juca aparece e cordialmente oferece uma bebida ao rapaz questionando sobre a presença do outro – a bebida teria sido rejeitada:
- Cadê?
- Cadê, o que?
- Bruno.
- Ah...! Foi no carro pegar os instrumentos. Já já começamos.
Ao encerrar o ligeiro bate-papo Bruno aparece com os instrumentos acomodando-se ao lado de Jr. Do outro lado entrecortado geograficamente por uma mesinha de centro, Juca.
- Então? Por onde começamos?
- Vamos tocar alguma coisa aqui você observa e tenta acompanhar. Depois a parte teórica.
- Certo, então.
Começaram, pois, em um lá no baixo do violão, logo Jr. iniciara a composição de uma forma simples, então Juca começou a acompanhar o som, empolgado. Sorridentes tocavam os três em harmonia. Até que Jr. iniciara um dedilhado. Uns gestos velozmente estranhos nos dedos, os quais não deixavam Juca ver e sentir as notas tocadas. A partir desse momento somente dois instrumentos sonorizavam a sala. Juca ficou tão nervoso que nem pensou em continuar o ritmo, pensava só em tocar daquele jeito: veloz e com encanto.
Entre a parede que separava a sala da cozinha jazia Bela, encantada pela produção sonora. Encantada. Observava tudo com ares amáveis. Juca a percebeu. E, quando os rapazes interromperam a música ela ergueu palmas aos rapazes, ligeiramente envergonhados. E assim, transcorreu o tempo. O contato havia dado certo para Juca, mas não para os novos amigos, pois a comunidade não apreciara muito o som. Ainda assim, eles a freqüentavam. Entre toda a comunidade apenas Bella e mais alguns poucos moradores admiraram o som. O que ela não gostava mesmo era a atenção exacerbada que o marido tocador aplicava às melodias.
Passaram-se muitas semanas até o próximo encontro; Juca aplicando-se ainda mais ao instrumento para poder surpreender os amigos, mas o que mais conseguia eram reproduções de solos pagodeiros. Todavia, no dia marcado para as aulas, somente Bruno apareceu, pois havia Jr. adoecido. Juca sentado às portas do fundo a observar morro acima, enquanto um ar seco e quente acariciava maliciosamente sua face; a porta estava aberta e, da entrada o rapaz chegante podia ver o colega sentado à porta do fundo, num banquinho de madeira, com o instrumento nas mãos, abafando as cordas e entoando mudas notas, mudas.
- Que houve amigo?
Juca estava mudo. Como mudas ficaram as cordas. A cabeça baixa os olhos baixos e os tons agudamente baixos.
- Ela se foi! Foi-se por causa do cavaco.
Juca chorava o chorinho que nunca conseguira produzir.
- Como?
- Nada!
Juca chorava, silenciosamente. Mas o cavaco, não. Levantou-se, de cabeça baixa, segurando friamente o instrumento, atravessou o caminho do amigo, a cozinha, a sala e, penetrou o quarto onde jazia o cavaquinho, guardado com tanto carinho e respeito, do seu pai. Depositou ali seu sonho também. Recolheu a saudade. Horas depois o mal do século o acometeu.